A visão Bantu Kongo da Sacralidade do Mundo Natural

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O mundo natural para o povo Bântu é a totalidade de totalidades amarradas acima como um pacote (futu) por Kalunga, a energia superior e mais completa, dentro e em volta de cada coisa no interior do universo ( luyalungunu).
Nossa Terra, o “pacote de essências” (futu dia n’kisi) para a vida na Terra, é parte dessa totalidade de totalidades. É vida. É o que é, visível e invisível. É a ligação do todo em um através do processo de vida e viver ( dingo-dingo dia môyo ye zinga). É o que nós somos porque somos uma parte disso. É o que mantém cada coisa na Terra e no Universo em seu lugar.


O conceito Bântu-Kôngo da sacralidade do mundo natural é simples e claro. Tem-se que deixá-los definir o nosso planeta com suas próprias palavras: “Aos olhos do povo Africano, especialmente aqueles em contato com os ensinamentos das antigas escolas Africanas, a Terra, nosso planeta, é futu dia n’kisi diakânga Kalûnga mu diâmbu dia môyo - um (pacote) de essências/remédios amarrados por Kalunga com intenção de vida na Terra”.
Esse futu ou funda contém cada coisa que a vida precisa para sua sobrevivência: essências/remédios (n’kisi / bilongo), comida (madia), bebida (ndwinu), etc.
O mundo natural é o que nós vemos, tocamos, sentimos, saboreamos e ouvimos e ainda assim nós não podemos alcançar o significado em sua totalidade. É o mistério de todos os mistérios. É o cerne do que é espiritual e sagrado. É ligar e desligar (Kala ye Zima) de todas as coisas, i.e., Nkingu Kibeni Wangudi Wa Kinenga mu biobio (a chave princípio de equilíbrio em tudo). Todas essas coisas, com ou sem expressão, com ou sem poder de locomoção, de acordo com o conceito Bântu de sacralidade são seres (Kadi).
Os povos Bântu, Kôngo e Luba, entre eles, aceitam o mundo natural como sagrado em sua totalidade porque, através dele, vêem refletida a grandeza de Kalunga. A energia superior de vida, aquele que é inteiramente completo (lunga) por si próprio. Assim, quando um Mûntu (ser humano) vê um minúsculo cristal (ngêngele) ele/ela vê nele, não só sua sacralidade, mas também a presença divina de Kalunga.
Além da atenção e admiração dadas a montanhas, vales, ao vento, ao céu e às mudanças do ciclo natural, o Mûntu dá especial atenção ao mundo da floresta porque, como se diz, “Mfinda Kasuka tufukidi” - nós perecemos se as florestas são extintas. Por causa dessa visão popular entre os Bântu, o próprio ato de entrar na floresta torna-se um ritual sagrado.
Antes de alguém entrar na floresta deve preparar-se ritualmente, porque adentrar na floresta é entrar numa das mais ricas e bem documentadas bibliotecas vivas na Terra. Em seu leito e abaixo vivem centenas e centenas de criaturas, grandes e pequenas, visíveis e invisíveis, fracas e poderosas, amigáveis e hostis, conhecidas e desconhecidas. Em seu interior correm, serpenteando, rios dentro dos quais nadam multidões de peixes. E acima de suas folhagens pode-se ouvir sons e melodias de todos os tipos. Todas essas “coisas”, dentro da floresta, constituem assuntos de aprendizagens para Mûntu, das quais ele coleta dados que pode “engavetar” em sua memória para uso futuro. Esse é o processo de construir conhecimento - nzailu.
Por causa dos aspectos de hostilidade presentes na floresta, o Mûntu deve proteger-se antes de entrar na floresta. Para isso, algumas vezes tem que imunizar seu corpo -kândika nitu antes de deixar a aldeia, especialmente durante a estação de caça.
O processo nkandukulu a nitu - imunização do corpo consiste em esfregar preparação medicinal no corpo, introduzir algo no corpo através de pequenas incisões na pele ou através da boca. Até mesmo os cães de caça passam por esse processo e são imunizados antes deles serem conduzidos para dentro do mato.
Adentrar uma floresta familiar é percebido como andar nos passos dos ancestrais. É descobrir o que eles conheceram transmitiram para nós, mas também encontrar saída onde eles deixaram fechado de modo que possamos caminhar em direção a mais descobertas para as necessidades de nossas gerações e aquelas das gerações futuras. Porém lá é mais que isso.
Andar na mata durante a iniciação é revisitar Makulu , onde cada coisa é possível de ser encontrada - Digamos aqui antes do trecho, que estudiosos Kôngo modernos estão usando este termo, makulu, nas suas conversações para significar biblioteca. Bem, não são as bibliotecas do mundo, coleções, em grandes parte, dos trabalhos dos mortos (bakulu), os ancestrais? Não é humanidade constituída por mais mortos do que vivos?
A revisita de makula tem um grande impacto na mente de ngudi-a-ngânga (mestre iniciadores) e seus seguidores (lândi) intelectualmente bem como espiritualmente. O processo em si mesmo é chamado “Mokina ye bafwa”- conversar com o morto .
Isso é, sumariamente:
- reunião com os ancestrais, i.e., com a presença de sua energia (ngolo minienie miâu). - viver a experiência do tempo, como hoje é vivida bem como foi vivida no passado e como deve ser vivida no futuro. - andar no passado seguindo Kini Kia bakulu (a sombra dos ancestrais). - rever o laço da comunidade bio-genética - n’sing’a dikânda: como fortificá-lo e como expandir seus ensinamentos.
- é estar em contato espiritualmente bem como intelectualmente com a sabedoria tradicional Africana (kingânga) do passado. - é entender as condições de vida e viver daquele tempo e de agora. Finalmente, é conversar com “bakulu”, ancestrais, numa experiência pessoal, i. é., sentindo sua presença entre nós hoje e amanhã.
Por causa da sacralidade do mundo natural como um real mundo vivo, tão ilustrado pela verdura de plantas e florestas, mawubi/maghubi, a maioria das reuniões que dão poderes espiritualmente é mantida em florestas. Por causa de sua importância para a vida e o viver, o mundo natural, e a floresta em particular, são percebidos como um templo aberto para todos. As pessoas são conduzidas para dentro desse templo mais espiritualmente sagrado, essa biblioteca viva, para tornar-se de verdade homem/mulher através do processo de iniciação, i. é., Mu bulwa mèso - manter-se de olhos abertos.
É um processo de aprender como se vincular com a natureza em unidade com ela. É aprender o que as florestas armazenam (como conhecimento) para nós; o que as plantas são para nosso uso; que criaturas compartilham nosso ecossistema conosco. É descobrir em nosso ambiente o que é comestível ou medicinal e o que não é.

Autor – Fu-Kiau K.K. Bunseki
Tradução portuguesa por Valdina O. Pinto

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